quinta-feira, março 18, 2010

Madalena foi pro Mar

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

[EcoDebate] Muito antes de o escritor Dan Brown escrever o livro O Código Da Vinci – que rediscutiu o papel de Maria Madalena na história – Chico Buarque já havia construído uma outra Madalena mais afinada com o mundo moderno e com os ideais de equidade de gênero, bandeira central do Dia Internacional da Mulher.

“Madalena foi pro mar/E eu fiquei a ver navios”

Por que será que Chico Buarque lançou a Madalena ao mar enquanto Homero, na Odisséia, colocou a Penélope a ver navios, esperando seu Ulisses? Uma das diferenças é que a música do Chico foi feita em 1965 em plena revolução sexual dos anos 60 e em meio à ebulição cultural que estabeleceu novos paradigmas e novas promessas de relacionamentos. Na ocasião, já se vislumbrava o ocaso da mulher conformada, dona de casa heróica, glorificada como mãe devota e esposa submissa.

“Quem com ela se encontrar/Diga lá no alto mar

Que é preciso voltar já/Pra cuidar dos nossos filhos”

A nova mulher – fruto da revolução sexual dos anos 60 – içou a vela em direção ao alto mar e deixou o marujo reclamar e pedir seu retorno ao lar, doce-lar. É uma viagem que redefiniu o lugar do feminino na sociedade. É a mulher saindo do óikos e se aventurando na pólis. É um novo porto e não uma simples inversão de papéis. É a aurora de um tempo em que os pais vão ter que repartir a guarda dos filhos. É um novo parto. Madalena foi pro mar é a metáfora da mulher que foi à luta.

“Pra zombar dos olhos meus/No alto mar a vela acena

Tanto jeito tem de adeus/Tanto adeus de Madalena”

A vela acenando é a bandeira desfraldada de uma nova mulher que zomba dos privilégios masculinos e dá adeus ao passado de submissão. Não é à-toa que Chico recorre à figura bíblica da prostituta que acompanhou o Senhor. Madalena expressa as contradições simbólicas da “mulher pública” que se contrapõem às (falsas?) santas e senhoras recatadas que a moralidade tradicional exige.

“É preciso não chorar/Maldizer, não vale a pena

Jesus manda perdoar/A mulher que é Madalena”

Diante da nova realidade o homem não deve chorar, porque homem não chora. Mas é impossível esconder as debilidades do olhar e a sensação de abandono (“a ver navios”). É como se o autor quisesse mostrar que o olho masculino não aceita o que vê, porém não ignora o crepúsculo do macho que se avista. Para sintetizar a perplexidade masculina, Chico utiliza o duplo sentido da palavra maldizer: o homem amaldiçoa as novas tendências ao mesmo tempo em que lamenta a perda de sua superioridade no mundo público. Todavia, a Justiça Superior (JeSus) manda perdoar o sonho de liberdade imbuído na audácia feminina das Marias Madalenas.

A poesia de Chico Buarque é polissêmica e sua grandeza está expressa na capacidade de construir belas imagens e deixar subentendido que uma estória particular contém uma história universal. “Madalena foi pro mar”, quando vista pela ótica masculina, é uma canção saudosista e até conservadora. Mas, quando vista pela ótica feminina, é uma canção revolucionária e inovadora, como revolucionária e inovadora é toda a obra do compositor brasileiro que mais soube captar as mudanças contemporâneas nas relações de gênero.

A odisséia feminina está apenas nos seus primórdios. No 8 de março de 2010, o Dia Internacional da Mulher completa 100 anos de comemorações e serve para lembrar as Madalenas que se lançaram e se lançam à luta e à conquista de “mares nunca dantes navegados”. Aquelas que já se aventuraram em águas turbulentas em busca de um sentido de vida e de maior equidade de gênero aprenderam com a sabedoria dos antigos navegadores, imortalizados na poética de Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”.

José Eustáquio Diniz Alves, colaborador e articulista do EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

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