terça-feira, dezembro 27, 2011

Resenha 2008: Em pauta, a separação entre Igreja e Estado

Lançada em fevereiro com alarde na mídia, a 45ª Campanha da Fraternidade 2008 reavivou a polêmica sobre a “defesa da vida desde a concepção”, tema central da campanha, coordenada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Estava montado o cenário para um ano de acirramento das posições contrárias aos direitos das mulheres e de desafio à separação constitucional entre Igreja e Estado. Processos no âmbito do Judiciário, Legislativo e Executivo mostraram a influência da CNBB nas decisões sobre leis e políticas públicas que envolvem sua concepção de “direito à vida”, como analisaremos a seguir.
NO JUDICIÁRIO
Liberadas pesquisas com células-tronco humanas embrionárias - Embora com ambiente social favorável, foi apertada a votação (6 votos a 5), no Supremo Tribunal Federal, que decidiu por esta liberação. Após mais de dois anos de tramitação e sob grande expectativa da sociedade, o STF decidiu manter o artigo 5º da Lei de Biossegurança (Lei n.11.105, de 24/03/2005), que regulamenta pesquisas com células-tronco humanas embrionárias e seu uso em terapias. Sancionada em 2005, esta Lei foi questionada pelo Ministério Público através do então Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, que entrou com uma Ação de Inconstitucionalidade (ADIN), baseando-se no princípio do direito do embrião à vida. Operadores/as do direito atestam que a lei brasileira não acolhe este princípio, e ele vem sendo questionado pela comunidade científica e por organizações da sociedade civil.
O ministro-relator Carlos Ayres Britto argumentou pela manutenção do artigo 5º, em parecer divulgado no mês de fevereiro. Em março, levantamento realizado pelo Ibope mostrou que 95% da população concordavam com as pesquisas com células-tronco embrionárias, uma tendência que se refletiu na cobertura da chamada grande imprensa.
Para a antropóloga Debora Diniz, a tentativa de barrar as pesquisas com células-tronco embrionáriastinha como alvo dos conservadores minar a moralidade do aborto no Brasil. Em 28 de maio foi retomada a discussão, finalmente concluída, no dia seguinte, com a aprovação do parecer de Ayres Britto. O resultado foi comemorado na mídia, e também pelo Conselho Nacional de Saúde, o que foi uma notícia alvissareira, dado que este conselho tem sido muito influenciado pela igreja.
Adiada decisão sobre interrupção da gravidez nos casos de anencefalia - O STF está julgando uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que demandou a liberação deste tipo de intervenção, sem necessidade de autorização judicial.
A argumentação da ADPF 54 tem como base os princípios constitucionais da dignidade humana, da liberdade e autonomia da vontade e o direito à saúde. Por solicitação do relator Marco Aurélio Mello foram realizadas, de início, três audiências públicas, que aconteceram entre agosto e setembro.
Para orientar o voto dos ministros, pela primeira vez, os microfones e telões do plenário do STF foram abertos a testemunhos pessoais, além das exposições técnicas, científicas e políticas. O debate ficou polarizado entre a defesa do direito das mulheres de decisão e a defesa do direito do feto à vida desde a concepção (independente da ausência de prognóstico de vida extra-uterina). Houve uma quarta audiência, computando-se um total de 17 depoimentos a favor e nove contrários, mas a decisão dos ministros foi adiada para 2009.
Com este adiamento mantém-se o status quo. Mulheres que optam por interromper a gravidez nesses casos, na maior parte das vezes conseguem autorizações com agilidade. Entretanto, muitas ainda se deparam com juízes que, mesmo tendo diante de si o diagnóstico, recusam-se a conceder a autorização.
A revista Veja publicou entrevista com o ministro Marco Aurélio Melloconsiderada um marco pela socióloga Fátima Pacheco Jordão, por redefinir “as perspectivas da questão do aborto no país, colocando-a muitos passos à frente”. Disse Jordão:
“A mídia tem repercutido o papel que o STF vem desempenhando na atual fase de construção da democracia brasileira. Trata-se de uma conjuntura de enorme delicadeza, na qual está em questão a autonomia do STF. Neste sentido, a manifestação do próprio pensamento, feita por Marco Aurélio Mello, não deve ser interpretada como casual. Há uma construção com um nível denso de explicitação de posição, que vem sendo urdido desde o voto pela liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias.”
Caso Mato Grosso do Sul - Processo deslanchado na capital, Campo Grande, teve grande repercussão por seu ineditismo e caráter policialesco. O Judiciário ameaçou de indiciamento, por prática de aborto, dez mil mulheres atendidas em uma clínica ginecológica da cidade. Esta ação, em andamento desde 2007, estarreceu setores que lutam pela abertura democrática e pelo combate à discriminação das mulheres, e navegou contra essa corrente.
As mulheres mais desassistidas juridicamente foram as que mais sofreram as conseqüências, depois de terem seus prontuários devassados e de serem interrogadas, em geral sem a presença de advogado ou defensor público. Alguns dos prontuários foram subtraídos do pacote, o que sugeriu a presença de privilégio e proteção para um seleto grupo. Qualificado como “operação fascista” pelo especialista em direitos humanos José Geraldo de Sousa Júnior, o processo chegou a ser suspenso em abril, por pressões de autoridades e organizações da sociedade civil, mas nada impediu seu andamento.
A OAB local (Ordem dos Advogados do Brasil) não quis intervir, como analisado por uma comissão de mulheres que se somou ao movimento local na tentativa de reverter o processo. Até o fim de 2008, mil mulheres foram acusadas, 150 passaram por interrogatório, 37 foram julgadas e 26 condenadas a prestar serviço comunitário cuidando de crianças em uma creche.
No Legislativo
Rejeição do PL 1135 - Em duas comissões da Câmara Federal - Seguridade Social e Família por 33 a zero e Constituição & Justiça por 57 a quatro - foi rejeitado este Projeto de Lei. Foram votações cujo quorum esteve composto, em grande maioria, por parlamentares engajados/as nas frentes religiosas antiabortistas, e ávidos/as por enterrar de vez esta proposta. O PL tramita desde 1991, e trata da descriminalização do aborto, para que se defina uma política de enfrentamento do problema como questão de saúde pública e de direito das mulheres.
Houve duas audiências públicas, onde o tom das críticas ao PL seguiu o estilo do parecer do relator, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), contrário à aprovação do PL. Este parecer foi duramente criticado pelo grupo de palestrantes favorável ao PL, convidado para as audiências públicas em carta aberta distribuida no plenário, com argumentos contundentes, que foram literalmente desqualificados pela voz de uma maioria de parlamentares sintonizados com o espírito da CNBB. Representado em uma das audiências, o Ministério da Saúde denunciou o descaso em relação a dados epidemiológicos, e a ênfase em argumentos de cunho moral e religioso, que também provocaram o desabafo da feminista Guacira Cesar de Oliveira (Cfemea), e uma justificativa do porquê os movimentos de mulheres insistiram em atuar em ambiente tão dominado por fundamentalistas religiosos:
“A representação no Congresso Nacional não traduz o que a sociedade pensa, pratica. Está muito aquém disso. Não é à toa que o CN padece de tantos desgastes: se há 1 milhão de abortos por ano, como passar de trator em cima dessa discussão? Acho que nossa presença nas audiências públicas amplia o debate para fora daquele espaço, para a sociedade, mais do que para dentro, ainda que lá esteja o poder de decisão”.
Criação da CPI do Aborto - Em dezembro o presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia,acatou a criação de uma polêmica Comissão Parlamentar de Inquérito, proposta pela bancada antiabortista, para investigar o comércio de substâncias abortivas e a prática de aborto no Brasil. Esta Comissão foi apelidada, pelas feministas, de CPI da Fogueira, em alusão à Inquisão.
A idéia está ancorada numa visão persecutória da questão, oposta à compreensão do problema dentro do espírito consagrado nas últimas conferências da ONU: o aborto é uma questão de direito reprodutivo e de saúde pública, e não um caso de polícia. Até o momento não foi completado o quadro de parlamentares integrantes desta CPI, e cresce o lobby para que ela não seja instalada.
NO EXECUTIVO
Ambiguidades - O governo federal, nesses processos, defendeu a liberação das pesquisas com células-tronco, da interrupção da gravidez por anencefalia e a própria descriminalização do aborto. Mas marcou presença no lançamento da Campanha da Fraternidade com o discurso antiabortista do chefe de gabinete do presidente Lula, o ex-seminarista e petista Gilberto Carvalho. Mais significativamente, aconteceu no final de 2008, a assinatura, pelo governo e sob a orientação do Itamaraty, do Acordo Brasil Vaticano. Apesar de ser um documento de extrema importância, esta assinatura não teve a devida repercussão na mídia. Trata-se de uma concordata que consolida privilégios e abre brechas para fortalecer a influência cultural e política da hierarquia católica sobre a sociedade brasileira. (Este documento foi encaminhado para aprovação pelo Congresso há poucas semanas).
Em dezembro, entretanto, ao discursar na Abertura da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, o presidente Lula criticou a CPI do Aborto, afirmando que enquanto as “madames” vão para outro país realizar o procedimento, as “pobres morrem na periferia” por terem praticado aborto clandestino. E disse ainda:
“Não se trata de ser contra ou a favor. Trata-se de discutirmos, com muita franqueza, uma questão de saúde pública”.
Angela Freitas / Instituto Patrícia Galvão
Colaboração/ Denise Gomide


Publicado em April 15th, 2009 Mulheres de Olho

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui o seu comentário sobre esse artigo: